Espaço de encontro virtual e socialização de idéias e referências das disciplinas Interpretação IV e
Teatro e Cultura Popular do Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia.
Considerando a nossa dificuldade de conceituação das três possibilidades de linha investigativa para a Etnocenologia propostas por Armindo Bião, faço aqui a citação de um texto que as explica e delimita:
A espetacularidade substantivada é manifesta em sua forma elaborada a partir dos comportamentos humanos espetaculares organizados (PCHSO) ou — conforme atualização terminológica de Pradier — das práticas performáticas, que seriam as artes do espetáculo, independentemente de sua origem ou forma de produção, incluindo a encenação profissional, manifestações populares, espetáculos tradicionais, etc.
A espetacularidade adjetivada seriam as atividades que não almejassem como fim um evento cênico, mas que, em sua execução,/ denotassem um aspecto espetacular, como rituais religiosos ou profanos, festas públicas e eventos sociais.
Já a espetacularidade adverbial seria o modo de coportamento cotidiano de certos grupos sociais, suas formas específicas de se relacionar, de criar mecanismos de expressão que os referenciem enquanto elemento pertencente a alguma sociedade.
Em todas as três possibilidades existe, ao menos, um elemento que as liga em um conjunto articulado: o corpo enquanto fator estruturante e estruturado de uma uma ação, seja preenchida de espetacularidade ou de teatralidade. Mas não um corpo perdido no nada, e sim, um corpo que se interrelaciona com um espaço e um contexto sócio-histórico específicos.
OLIVEIRA, E. J. de. Um olhar sobre o fazer artístico do outro. In: BIÃO, Armindo (Org.). Artes do Corpo e do Espetáculo: questões de etnocenologia. Salvador: P&A Editora, 2007, p. 236-237.
No primeiro dia de maio de 2016 estava marcada uma visita à Tenda Tambores de Mina, Casa de São Benedito da Cruzada de Xangô. Era um convite que eu havia feito ao Projeto Pau Pedra, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, para conhecer de perto o trabalho de uma família maranhense que havia se mudado para Uberaba, de forma similar que um dos integrantes do Projeto, vindo do Pará. Ao chegarmos, fomos recepcionados por Mãe Ana Lúcia de São Benedito na Cruzada de Xangô, com quem conversamos longamente a respeito da história de sua vinda para Uberaba junto de sua família. Foi uma conversa entremeada e compartilhada por seus filhos e parentes, em meio a histórias, cantos, danças e batuques, dos quais fomos convidados a participar mais ativamente em determinado momento. Em um grupo de cinco "acadêmicos", munidos de curiosidade e câmera, nos vimos algumas vezes também fotografados e filmados pelos integrantes da casa, estabelecendo uma interessante inversão de posicionamentos.
A Tenda e o Projeto são duas formas distintas de relação com as culturas brasileiras, mas ambas com processos relacionados à restauração do comportamento a partir de processos criativos em interação com a tradição. O modelo de restauração do comportamento a que me refiro é pensado por Richard Schechner (1985) e se refere a como o comportamento vivo (sequências organizadas de eventos, roteiros de ações, movimentos conhecidos, gestos etc.) são rearranjados ou reconstruídos a partir de um processo que é ao mesmo tempo reflexivo e simbólico. Para Schechner, algumas vezes, a "verdade", "fonte" (ou "matriz") deste comportamento pode mesmo ser ignorada, perdida e contradita neste processo de restauração, mesmo quando aparentemente é honrada e observada. Apesar de se originarem inicialmente enquanto processo, ao serem utilizados nos "ensaios" para criar um novo processo, a performance, estes comportamentos são então entendidos como coisas, itens, "material", o que lhes confere a propriedade de serem transformados, transmitidos e relembrados. O "performer", ao entrar em contato , recuperar, relembrar, ou mesmo inventar este comportamento e agir novamente de acordo com ele, o faz tanto sendo "absorvido por ele" ou "existindo lado a lado" com ele.
Enquanto a Tenda Tambores de Mina se refere a uma família
tradicional que busca dar continuidade à sua tradição ao mesmo tempo
que busca relação com a tradição local, o Projeto é uma proposta de
aproximação do conhecimento acadêmico do conhecimento "popular". A Tenda
dá continuidade a práticas referentes às tradições maranhenses de
Encataria, Tambor de Mina, Tambor de Crioula e Bumba-Meu-Boi, bem como ao Congado mineiro. Já o Projeto Pau Pedra tem se interessado principalmente em pesquisar o carimbó paraense (da terra natal de um dos integrantes do Projeto) e o cacuriá maranhense a partir de referências em sua maior parte externas ao próprio grupo. Guardadas as devidas proporções e especificidades, este projeto é similar a um outro do qual fiz parte por cinco anos, o Grupo Baiadô: Pesquisa e Prática em Danças Brasileiras, da Universidade Federal de Uberlândia. É, portanto, muito importante para mim poder participar deste início de caminhada com eles propondo a aproximação com a Tenda Tambores de Mina devido à forma como esta família estabelece diálogo entre a cultura de sua terra natal e a cultura uberabense.
A "matriz" de recuperação do comportamento da Tenda Tambores de Mina remete a uma relação profunda com a ancestralidade de seus integrantes, que foi continuamente incorporada nos ritmos, cantos, danças e histórias da família, (segundo a tríade cantar-dançar-batucar de Fu-Kiau, discutida por Ligiéro, aqui e aqui). Mesmo ao buscarem criar um terno de Congo, o fizeram utilizando elementos de sua tradição, materializados nas memórias dos integrantes da casa. Tanto as dinâmicas de busca pela continuidade da cultura de sua terra natal, quanto aquelas de aproximação com a cultura que os recebia são mais facilmente entendidas segundo a ideia de motriz do que de matriz, entretanto, pois o movimento de incorporação e sustentação da tradição não é estático neste processo, sendo antes dinâmico e de constante adaptação à nova situação vivida por seus praticantes.
Neste aspecto, tanto a brincadeira, quanto o jogo e o ritual estão inter-relacionados, não sendo plausível a separação ocidental que fazemos entre religião e entretenimento. Tal se faz ainda mais evidente se considerarmos que tanto o Boi quanto o terno de Congo da Tenda têm como responsável o patrão da casa, o senhor Pavão Dourado Africano, que é uma entidade ancestral e não encarnada. Inclusive, ao serem convidados a participar em determinado evento de uma escola que levassem as danças do Boi, mas não fizessem menção à religiosidade da Tenda, lhes foi estranha tal solicitação. O Boi não dança sem seu patrão e, da mesma forma que em toda solenidade em que o chefe da casa está presente, é preciso oferecer o respeito adequado que é recuperado em cantos, danças e ritmos apropriados.
Estabelecer diálogo com as tradições populares implica, assim, em entender que este diálogo não é de natureza puramente verbal, trazendo portanto um questionamento de como as diversas instituições formais podem acabar silenciando ou marginalizando a voz destes grupos ao buscarem impor suas próprias estruturas de construção de conhecimento como as únicas possíveis. Abrir a escuta implica em um esforço de atenção para além dos ouvidos, requerendo uma revisão da própria postura inclusive de criação artística. Desta forma, fica o desafio de pensar e repensar a arte e a própria universidade a partir de outras práticas que não aquelas comumente estabelecidas e "naturalizadas" no cotidiano acadêmico.
SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Filadélfia: University of Pennsylvania, 1985.
Atualização (23/07/2016) O ponto de vista de quem é observado, revelando que quem olha é também olhado.
Acontece esta semana de 10 a 12 de junho o evento Interfaces
Vamos acompanhar juntos duas atividades às 19h no MUnA:
Sexta: Performance Grassa Crua com Fernanda Magalhães da UEL,
direção de Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson
ambas do LUME - UNICAMP
Sábado: Espetáculo Serestando com Ana Cristina Colla.
No sábado pela manhã teremos aula no horário normal,
uma vez que dia 18 de junho, no outro sábado já é o Encontrão.
sábado, 4 de junho de 2016
Licença, que eu vou rodar, no carrossel do destino
Há muito tempo que eu queria cursar a disciplina de Teatro e Cultura Popular, mas sei lá porque cargas d'água este meu desejo demorou tanto a se concretizar. Mas, enfim, estou aqui estudando este universo da cultura popular e regional que tanto me atrai e estimula a pesquisar. Estes nossos encontros semanais aos sábados de manhã, tem me acordado (literalmente) para valores, impulsos, quereres, gostos - que estavam há certo tempo meio que adormecidos. Então este ligeiro e intenso contato com estas práticas e modos de compreender arte e pensar arte sobre o viés dos saberes populares, me tirou do confortável solo conceitual-acadêmico que a universidade nos dispõe. Levando-me para lugares outros em que as certezas já não são tão certas, e a neutralidade nem é mais tão possível - somente as perspectivas, os pontos de vistas, as compreensões singulares construídas pelo olhar (etnocenológico) de cada um.
Reencontrei nas minhas navegações (refletindo e futucando os saberes compartilhados na disciplina) por ilhas virtuais, meu grande mestre da cultura Popular, Antonio Nóbrega. Tive a oportunidade de me aprofundar um pouco mais sobre a forma que ele desenvolveu de fazer arte, e recordei o quanto esta maneira tem a ver com a minha, ou pelo menos com a que almejo ter.
Reavivei em mim as lembranças referentes as práticas populares que já conheci e assisti ao longo da minha jornada, o que me proporcionou uma afirmação das minhas raízes, da minha herança cultural, quiçá da minha ancestralidade. Folia de reis, folia do divino, folia de nossa senhora do rosário, congado, caiapó, maracatu, coco, cacuriá, cavalo marinho - estas e outras espetacularidades vieram a tona para serem novamente brincadas e cantaroladas. Me despeço com o trecho de uma linda canção de Antonio Nóbrega:
"Deixo os versos que escrevi/ As cantigas que cantei
Cinco ou seis coisas que eu sei/ E um milhão que eu esqueci.
Deixo este mundo daqui/ Selva com lei de cassino;
Vou renascer num menino/ Num país além do mar...
Licença, que eu vou rodar/ No carrossel do destino."
como ninguém tomou a inciativa ainda, estou abrindo esta postagem como repositório dos pontos de vista a respeito da importância da disciplina "Teatro e Cultura Popular" no seu processo de formação, conforme havia sido solicitado pela professora Renata Meira em nosso último encontro.