Em minhas trajetórias pessoais de investigação de
alternativas para lidar no espaço escolar com a relação com esse
inerente embricamento entre religiosidade, entretenimento e,
consequentemente, cultura, tenho me deparado com diversas contradições
(pessoais, inclusive). Meu maior questionamento se deve à questão do
Estado ser laico ao mesmo tempo em que precisamos (e devemos) abordar
conhecimentos referentes à história e cultura afroameríndia, história e
cultura essas que não se fazem separadas da religiosidade ao mesmo tempo
que não podem ser apreendidas pelas vias comumente utilizadas nas
escolas de lidar com o conhecimento, sob o risco de promover mais
marginalização e silenciamento.
Primeiramente, é
importante ressaltar que este tipo de trabalho se faz pelo
reconhecimento da diversidade e pelo respeito às diferenças. É preciso
identificar, dar espaço e condições para que diferentes vozes se façam
ouvidas, o que requer também que o professor se reconheça enquanto parte
deste processo, não sendo (e não precisando ser) ele o detentor de
todos os conhecimentos válidos. Em segundo lugar, seria interessante
olhar a cultura para além dos elementos cuja obviedade salta aos olhos,
elementos esses que tendem a nos aproximar de visões clássicas e
estanques do que chamamos de folclore — comidas, roupas, lendas, danças
"típicas", desconectadas de seu contexto, são exemplos comumente
abordados no espaço escolar quando nos aproximamos das culturas
populares.
Sob estas perspectivas, das inúmeras
alternativas que venho experimentando, há duas ideias que têm sido
importantes para mim: a ideia de ampliação do horizonte cultural e o
trabalho com algumas estruturas que identifiquei como recorrentes nas
práticas culturais das quais tenho me aproximado.
A
ampliação do horizonte cultural se refere principalmente em propor o
contato com práticas culturais com as quais dificilmente temos contato, o
que pede a revisão de posturas estéticas e de visão de mundo. Pede,
inclusive, que sejam identificados na própria escola os sujeitos com
mais propriedade do que o próprio professor para tratar destes assuntos,
sujeitos esses que podem ser tanto estudantes quanto outros
profissionais, vizinhos ou familiares.
Em se tratando
do que chamei de "trabalho com estruturas", considero mais clara para
mim até o momento a estratégia que faço de aproximação com o conceito de
sagrado, que resolve em parte a questão da laicidade e do respeito às
diferenças, mas que ainda corre o risco de diminuir a compreensão das
tensões de marginalização e exclusão sociais que são importantes neste
tipo de discussão. Vindo de um grupo de danças brasileiras, eu trago a
prática da dança como estratégia de construção de conhecimento e utilizo
um exercício que era comum na época em que fazia parte do grupo: o
fincar do mastro. O fincar do mastro envolve um trabalho de flexão
súbita dos joelhos, mantendo a verticalidade do tronco, para então, pelo
empurrar do chão com os pés, estender os joelhos novamente. A proposta é
buscar a consciência do peso do quadril ao mesmo tempo que desenvolve
uma maior conexão com o chão pela percepção da oposição dos vetores que
mantém a postura ereta. Este exercício busca incorporar o símbolo do
mastro votivo na corporeidade, associando elementos específicos deste
artefato que, de forma resumida, são os seguintes: oposição/ conexão
entre céu e terra, ao mesmo tempo em que se simboliza o elemento sagrado
na bandeira. Nos festejos juninos, em geral há um santo católico no
alto desta bandeira, representando o elemento sagrado festejado naquele
dia em particular. Na minha releitura do exercício, eu proponho que se
coloquem nesta bandeira elementos que tenham uma sacralidade particular
para cada participante da proposta, procurando discutir de forma
indireta o entendimento de que há uma diversidade de relações possíveis
com uma mesma estrutura de interação, algo como conhecer no próprio
corpo a prática do outro a partir de uma empatia que se estabelece por
meio de uma ótica que não é nem a sua, nem a do outro, mas de uma
"encruzilhada ocular" (Oliveira, 2007). A proposta é
permitir um maior desprendimento para se chegar ao outro, para tentar vê-lo, não com os próprios olhos, nem com os olhos dele, mas a partir de uma encruzilhada ocular, que constrói um outro fluxo ótico, parte da vivência do eu e do desejo de mergulhar na existência do outro, num processo dinâmico, complexo e vivo (Oliveira, op. cit., 222).
OLIVEIRA, E. J. de. Um olhar sobre o fazer artístico do outro. In: BIÃO, Armindo (Org.). Artes do Corpo e do Espetáculo: questões de etnocenologia. Salvador: P&A Editora, 2007.